Sobre o impossível de dizer
O trauma, para Lacan, não é tanto o que ocorreu e que podemos recordar, e sim aquilo que não podemos deixar de repetir, o que “não cessa de não se escrever”.
Um homem da antiga Alemanha Oriental é deportado para a Sibéria. Antes de partir, sabendo que suas mensagens seriam censuradas, diz a seus amigos: estabeleçamos um código, se receberem uma carta escrita em tinta azul, tudo o que se conta é verdade; se estiver em tinta vermelha, é falso. Um código simples, que se funda na lógica da diferença significante.
Ao cabo de um mês chega uma carta da Sibéria, escrita em azul, e diz: “Aqui onde estou, na Sibéria, as casas são amplas e espaçosas. Nas ruas podemos ver todos os tipos de tendas e espetáculos, nos cinemas podemos ver todos os filmes de Hollywood, podemos conseguir comprar tudo o que queremos. O único que não podemos conseguir é tinta vermelha”.
Podemos dizer que nos falta a tinta vermelha para escrever uma verdade com a forma de falso para passar pela censura. E só nos resta a forma de evocar a verdade com a tinta azul que sempre mentirá. Essa mentira sobre a verdade impossível de escrever é uma mentira escrita em tinta azul. A falta da tinta vermelha é uma falta estrutural.
Nos falta a tinta vermelha para dizer todo o saber, para dizer o real da experiência traumática. Temos somente o acesso a tinta azul para tentar dizer com isso algo do que é o real. E esse homem se engenhou muito bem para dizer o que tinha que dizer. A falta da tinta vermelha, se pôde dizer com a tinta azul. Diríamos que ele construiu um bom sintoma. Conseguiu um sintoma que lhe permitiu dizer algo sobre o impossível de dizer.
Eis o trabalho de uma análise: escrever o real traumático com a tinta azul, de modo distinto a cada um, à falta da tinta vermelha a qual não temos.
Há aí um conselho clínico. Ante alguém com uma experiência traumática, o melhor é sustentar o que o sujeito decide dizer e não empurrar a um “há que dizer tudo”, porque isso não fará mais que agravar a falta da tinta vermelha, a impossibilidade de dar conta desse real. É necessário antes um trabalho de tinta azul para bordear esse impossível de dizer.
Miquel Bassols
